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escritas em pandemia: mulheres que escrevem

alice dayane ediane eleuda ethel fran glória irlys isadora (duas isadoras) ivna lara lidi lídia liduína marília naiana nina paula raisa sablina sabrina silvia stella

vinte e quatro mulheres. vinte e quatro mulheres no ceará. vinte e quatro mulheres que escrevem.

como cada um desses nomes — anônimos nomes próprios sem sobrenome, mulheres como você que agora me lê — vem usando a escrita para contar esses tempos pandêmicos a partir do que toma lugar no íntimo?

tento retomar os fios primeiros dessa tessitura de nomes, mulheres, palavras que recebeu o nome de escritas em pandemia. glória e lara, com quem dividi o ofício de conduzir uma publicação, eram duas das que já vinham partilhando escritas, na generosidade de quem oferece um pouco de si ao mundo, em seus perfis nas redes sociais.

glória é daquelas mulheres que atraem pessoas (e seus fazeres) em torno de si, ora impulsionando-as a mover o que nelas talvez já é latência, ora propondo invenções. às vezes, basta um sopro. uma deixa. um desejo segredado em voz alta. no três de maio, glória postava um texto, intitulado “nada será como antes?”, em seu perfil no facebook. nos comentários, propõe a uma de suas amigas-interlocutoras: “vamos organizar um livro reunindo esses escritos de ‘isolamento’?”. já ali, imagina outras mulheres que poderiam juntar-se a essa ideia-desejo que, tocando outros corpos, vai ganhando concretude.

eu... eu precisava de um trabalho a me fazer querer acordar. à época, eram cerca de quarenta e cinco dias de isolamento. agora, já chegando aos quatro meses em casa, percebo como os sentimentos com os quais o corpo já tenta se acostumar faziam-se, então, mais fortes porque mais novos: parecia haver mais medo, mais incerteza, mais raiva, mais comoção. imersa em trabalho (e trabalho de escrita), o que não me dava outra opção a não ser levantar, precisava de algo que me ensejasse vontade. penso como a pandemia (e todos os seus efeitos) radicalizou algumas percepções e posições por aqui. tornou claro, a mim, onde não quero investir-me intelectual e afetivamente. tudo mudou — e se eu não posso mudar tudo o que havia antes de tudo mudar, preciso inventar algo que atenue o seu peso. e, talvez, assim mudar uma poeirinha dos dias.

acredito que, para cada uma das vinte e quatro mulheres que partilharam em pouco de si nessa publicação, os motivos (primeiro, para escrever; depois para participar do projeto) foram vários. nunca saberemos de todos eles, mas eles moveram-nos a algo que, decerto, os (e nos) ultrapassa. eu, lara e glória nutrimos de intenção aquela ideia-desejo. começamos a movimentá-la, e ela também começou a nos movimentar. gosto de pensar no que move.

em vez de buscarmos o “inédito”, olhamos para o que já existe e pensamos em como usá-lo de outras maneiras, recolocando-o em movimento. em tempos de crise, precisamos escrever, diz uma antropóloga chamada béatrice fraenkel[1]. precisamos produzir, fazer algo com o que nos atormenta, arranjar maneiras de lidar com os meandros da existência, continuar olhando para si e dirigindo-se ao outro. as palavras abundam. são escritas em (tempos de) pandemia. percebemos que tantas mulheres têm partilhado seus efêmeros textos em cadernos, arquivos do word, bloco de notas do celular ou legendas no Instagram. depois do jorro, são ali guardadas ou deixadas. às vezes conhecem o mundo, às vezes apenas uns outros. aqueles textos, em algum momento, provavelmente estariam “perdidos” em gavetas, backups ou labirinto do virtual.

“transforme isto em outra coisa”, diz a artista cearense fernanda meireles. e se reuníssemos esses fragmentos? se tecêssemos os fios dessas palavras, que ainda não se conhecem entre si, numa ligadura improvável? e as palavras que estão nas imagens? o que essas grafias nos dizem, do lugar do íntimo, sobre o que estamos vivendo?

lembramos de postagens de mulheres amigas ou conhecidas que versavam sobre si e sobre o outro, sobre a casa e a rua vista da janela, sobre as dores e as descobertas. prosa e poesia corajosas. à medida que atentávamos para o que vinha sendo feito (ou escrito), mais encontrávamos novas escritas deixadas nas redes sociais, nelas pousando atenção mais demorada. mesmo depois do lançamento da publicação, continuávamos a achar novas “escritas em pandemia”.

durante esse processo de organização e produção, percebemos — e assumimos como uma postura — que essa não seria uma publicação de, necessariamente, escritoras, mas de mulheres que escrevem, quer se autodenominem escritoras ou não.

nem todas as vinte e quatro mulheres que compõem a publicação se conhecem — ou melhor, talvez passaram a se conhecer através da reunião de suas palavras. todos os textos partem de vivências da/na pandemia, mas tomam rumos distintos, justamente porque não se trata da produção de grandes narrativas dos tempos pandêmicos, mas de como, nessa ótica do pequeno, esses são vividos para cada uma, que sensações compreendem, que lembranças disparam, o que as fazem pensar. esse pode ter sido um dos pontos mais interessantes no processo: a mistura entre mulheres de trajetórias diversas, entre perspectivas várias na escrita desses tempos, entre prosa e poesia... o que se passa no entre.

é curioso que, desde o começo, decidi que não iria participar também com um texto, diferentemente das outras organizadoras. trabalho escrevendo, por isso, tenho escrito muito, mas as palavras parecem ter secado quando tento falar de uma experiência íntima desses dias: não sei o que dizer diante de tanto. não quero escrever, talvez por medo de, assim, desaguar o que pensava ter secado. então, leio as palavras de outrem e desenho. tenho tido uma necessidade de literatura, eu que amo a teoria. nunca desenhei tanto. e não, não é por sobra de “tempo ocioso” (esse delírio, de uns e outros, de ver a pandemia como “tempo de olhar para dentro” ou “tempo para si”...), mas por precisar fazer alguma coisa qualquer com a estranheza do tempo.

essa necessidade tem se manifestado ou encontrado lugar em algumas primeiras vezes: coisas para as quais continuamente adiava o momento certo tiveram que acontecer — agora, no “fim do mundo”. com essa publicação, inaugurei mais algumas delas de uma vez só: além de participar da organização e produção da publicação, a ilustrei e fiz o projeto gráfico (eu, que não sou ilustradora nem designer).

me parece que suspendemos o ser nesses fazeres que urgem em nós.

estar sendo. tornar-se. devir.

privilegiar o percurso ao estado.

o processo de ilustração, concentrado entre os dias doze e vinte e quatro de maio, foi como um mergulho. tornou-se não só uma maneira de lidar com o que não sei dizer, mas de deter o olhar em algo, em mim e no outro. desenhar é também, ou antes de tudo, uma maneira de ver, e, à medida que os traços seguiam, mostravam-se indícios do que tenho pensado e sentido nesse momento, mesmo sem recurso à palavra.


assim, os desenhos não mantêm uma relação necessariamente representativa com os textos, não os traduzem, mas, de alguma forma, conversam com eles, numa mistura de experiências singulares nos traços dessas diferentes grafias, imagens e palavras.


as autoras da publicação, bem como outras artistas cearenses, busquei-as em imagens deixadas, como os textos que catávamos, em suas redes sociais. nelas, demorei o olhar, e delas, continuei o caminho[2]. também me olhei. em casa, nos primeiros meses de isolamento, andava com cada vez menos peças de roupa. me demorava na frente do espelho (agora, ando riscando também os espelhos). imagens proliferam no rolo da câmera do celular. a cafeteira quebrada, a cachorra esparramada e o pacote de bolacha viram desenho.

os trinta e cinco desenhos, imagens-de-imagens, todos em lápis e um barato nanquim vermelho — vermelho-fogo, diz o rótulo (um pote cheinho me assegurou que a tinta não acabaria antes de acabarem os desenhos) foram se agrupando em doze folhas. corpos ficaram juntinhos. em casa, “longe” das demais, o trabalho com esses textos e imagens não foi solitário. após o lançamento da publicação, comentei que me senti cuidando das palavras das outras. depois, percebi que, além disso, ao falar das ilustrações, acabei também escrevendo um texto e, mesmo ao fazê-las, ali se insinuava uma escritura.

vilém flusser, em a escrita, diz que “escrever não é apenas um gesto reflexivo, que se volta para o interior, é também um gesto (político) expressivo, que se volta para o exterior. quem escreve não só imprime algo em seu próprio interior, como também o exprime ao encontro do outro”[3].

o escritas em pandemia foi lançado no primeiro dia de junho. numa segunda-feira, lançava-se a novos movimentos que continuam a tecer (e vale lembrar que textos são como tecidos inacabados) os caminhos dessas palavras, essas se enredando com outras, e outras fazendo crescer a vontade, em quem lê — leitura que é já produção —, de também escrever e colocar suas palavras no mundo.


[1] FRAENKEL, Béatrice. Street Shrines and the Writing of Disaster: 9/11, New York, 2001. In: MARGRY, Peter Jan; SÁNCHEZ-CARRETERO, Cristina (Orgs.). Grassroots Memorials: The Politics of Memorializing Traumatic Death. New York: Berghahn Books, 2011. [2] passeei entre imagens de, por exemplo, anie barreto, andréia pires, dayane araújo, isadora ravena, iza diaquíno, jamille queiroz, lissa cavalcante, louise félix, marissa pimenta, paula yemanjá, raisa christina... apenas algumas das artistas por quem nutro admiração. aqui deixo as referências dos desenhos e o agradecimento por partilharem algo de si no mundo. [3] FLUSSER, Vilém. A escrita – há futuro para a escrita? São Paulo: Annablume, 2010. p. 20.

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